Resenhas

Arcade Fire – Everything Now

Grupo canadense engrossa o coro de descontentamento com a vida contemporânea

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Ano: 2017
Selo: Sonovox, Columbia
# Faixas: 13
Estilos: Indie, Dance, Disco
Duração: 47:11
Nota: 3.5
Produção: Arcade Fire, Thomas Bangalter, Geoff Barrow, Markus Dravs, Eric Heigle, Steve Mackey

Existe um tema recorrente na pintura de René Magritte que é o do quadro que se encaixa perfeitamente na paisagem de fundo, criando uma ilusão de que arte e vida são a mesma coisa. A banda canadense Arcade Fire, em seu álbum Everything Now, aposta na mesma abordagem conceitual, incorporando sua música ao cenário desolado da contemporaneidade.

A capa do trabalho apresenta um outdoor que se confunde com as montanhas de fundo. Olhando com atenção, existem dois alto falantes que brotam debaixo do cartaz. É uma perspectiva metalinguística: o álbum pretende igualar-se ao mundo contemporâneo apenas para criticá-lo. Para tal, vai incorporar seus defeitos e mostrá-los como são ao seu público.

Essa pretensão ao realismo, é claro, é apenas uma abstração: a paisagem representada na pintura é, ela também, apenas pintura. São duas coisas para prestar atenção. Em primeiro lugar, toda perspectiva de realidade é apenas um ponto de vista entre muitos possíveis. Além disso, uma imitação só poderia se encaixar no “mundo real” na medida em que este permanecesse intacto: qualquer sinal de passagem do tempo tornaria a obra obsoleta.

Everything Now é um álbum que vê com ressentimento a passagem do tempo acelerado e todos os excessos da vida contemporânea, principalmente o do consumo de informação. Em muitos momentos – com frequência os pontos mais frágeis do disco – o álbum vai passar por essa crítica. O título da faixa Infinite Content é um trocadilho que em inglês pode ser lido como “conteúdo infinito” ou como “satisfação infinita”. Creature Comfort, por sua vez, fala sobre o suicídio de uma garota insatisfeita com o seu corpo: é o ponto no qual o desejo de se tornar uma imagem se torna patológico. Estaríamos presos num loop de satisfação condicionada à curto prazo, que sempre precisa de mais estímulo.

O álbum toca em tais assuntos de forma contraditória: como falar de um sofrimento provocado pelas imagens sem espetacularizá-lo? Como apontar a falta de perspectiva endossando a narrativa cínica que se tornou o lugar comum da música contemporânea? Vale lembrar que, como marketing para o lançamento do disco, a banda publicou sites de fake news criticando negativamente o trabalho. O falso merchandising incluía um fidget spinner – um produto criado para aliviar a ansiedade que se tornou hit de vendas – com entrada usb.

No entanto, em muitos pontos, Arcade Fire acerta na crítica – e, principalmente – na música que faz. Resenhas saídas imediatamente após o lançamento do trabalho, na sanha da necessidade de informação, já categorizaram Everything Now como algo fadado ao esquecimento. Se o trabalho se apaga junto com a paisagem que inevitavelmente vai mudar – ou se resiste -, o tempo é quem decide.

Uma audição atenta vai notar que este não é um álbum tão fraco: uma boa parte das canções presentes aqui tem força e letras evocativas, e soam suculentas o suficiente. A voz resmungada de Win Butler contrasta com o grude da bateria que cola todos os elementos: pianos aquecidos pela cafonice, contrabaixo que conduz o ouvinte pela cintura, backing vocals feitos para cantar em conjunto. O trabalho parece seguir uma linha de pensamento que tem maturado no grupo desde Reflektor, ainda apostando em ritmos dançantes como o Afrobeat, mas focando de vez no Disco dos anos 70 e no Dance dos 80 – as comparações com ABBA são inevitáveis. O time de produtores reunidos é coerente, contando com as participações de gente como Thomas Bangalter (Daft Punk) e Steve Mackey (Pulp).

A maré de críticas negativas que Everything Now tem recebido é sintomática e é importante atentar para isso. Se faz mais sentido falar dos deslizes do grupo do que exaltar as qualidades de seu novo trabalho é porque Arcade Fire sempre exigiu e ofereceu muito a quem o escutou. Agora, pouco faz para resgatar o ouvinte do senso comum.

Dizem que o ser humano aceita o sofrimento na medida em que espera uma recompensa por ele. Caso contrário, viverá no ressentimento do passado. Arcade Fire olha com amargura e cinismo para o presente, saturando um senso de desamparo com a condição contemporânea, ao invés de propor uma visão além das camadas mais óbvias da reclamação.

No fim das contas, o que falta em Everything Now é a apoteose, o refrão emocionado e a sensação de redenção para as angústias da vida, coisa que condiz com a estratégia conceitual do álbum, mas não condiz com o passado da banda e toda a sua discografia até então, deixando os fãs órfãos do senso de comunidade tão característico do grupo.

(Everything Now em uma música: Creature Comfort)

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BOM PARA QUEM OUVE: Abba, David Bowie, Broken Social Scene
ARTISTA: Arcade Fire
MARCADORES: Dance, Disco, Indie

Autor:

é músico e escreve sobre arte