Resenhas

Depeche Mode – Spirit

Grupo inglês faz disco engajado e sensacional

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Ano: 2017
Selo: Sony
# Faixas: 12
Estilos: Eletrônica, Rock Alternativo
Duração: 49:18
Nota: 4.5
Produção: James Ford

Há muito tempo que Depeche Mode deixou de ser uma banda que faz “música dançante”. O grupo inglês vem trabalhando um conceito mais sério e pungente desde o início dos anos 1990, quando elevou o tom de sua música a partir da dobradinha de álbuns Violator (1990) e Songs Of Faith And Devotion (1993), conferindo um padrão estético do qual não mais abriu mão. Estes dois discos nortearam quase tudo o que foi produzido depois e não é diferente com este novíssimo é sensacional Spirit. Porém esta é só uma parte de seu DNA, restando muito mais por entender. Mesmo não abordando questões políticas de forma aberta, como faz seu contemporâneo U2, Depeche sempre transmitiu a ideia de que seus integrantes são pessoas em sintonia com o que acontece no mundo e que, de alguma forma, essas impressões sempre estiveram presentes nos discos. Agora, a banda decidiu abrir o discurso e fazer um álbum abertamente questionador.

A abordagem sonora padrão do grupo, 100% Eletrônica, está a serviço das palavras em Spirit. E as letras compostas por David Gahan e Martin Gore são verdadeiras cacetadas no “estado das coisas”, sem poupar nem mesmo seus fãs durante este processo. Num mundo politicamente correto, no qual a mídia estabelece parâmetros calcados no consumo exacerbado de tudo, como manda a cartilha do neoliberalismo, o grupo questiona as possibilidades de insurreição diante do que vivemos hoje. Como os integrantes do Depeche são cinquentões, já vivenciaram um planeta Terra bastante diferente do que temos, podendo comentar com autoridade sobre a pasmaceira tecnológica travestida de felicidade que só faz aumentar a desigualdade entre as pessoas, desmatar o planeta e adulterar os sistemas políticos, não poupando nem mesmo a democracia e a legitimidade. São pessoas que têm autoridade para usar a palavra “revolução”, tão banalizada por aí.

O primeiro single do disco, Where’s The Revolution, praticamente cobra das pessoas uma indignação em relação ao que vivemos hoje. Faz isso de forma bastante clara, visando provocar a conscientização diante da opressão que anestesia, dizendo “seus direitos são aviltados, seus pontos de vista recusados, eles te manipulam e ameaçam, com armas e terrorismo, te ferem até você se idiotizar e te forçam a ficar do lado deles”. Convenhamos, é verdadeiro e lamentavelmente raro ver um verso assim em uma canção que está rodando o planeta sob a forma de vídeo no YouTube, não? Este verdadeiro “call to arms” não chega a ser uma “revolução Raiz” mas está milhas distante de uma “revolução Nutella”. Scum, agradavelmente parecida com Barrel Of A Gun, sucesso de outros carnavais, tem um arranjo irrepreensível, com uma torrente de batidas e mudanças de clima. Em outra faixa, Going Backwards, a banda faz um inventário sobre a idiocracia que determina valores e o conhecimento, afetados diretamente pela mídia e pelo consumo, abrindo espaço para injustiça, desigualdade e líderes populistas, mostrando o quanto são diferentes informação e conhecimento. A certo ponto da letra, o verso definitivo: “We are going backwards to a caveman mentality” ou, “estamos andando pra trás, em direção a uma mentalidade digna de homens da caverna”. Na mosca.

Apesar da produção de James Ford conferir uma sonoridade elegantíssima e apropriada ao tipo de álbum que é Spirit, muita gente, na maioria fãs de longa data da banda, torceram o nariz para a opção por canções lentas e climáticas feita aqui. Faz sentido que a banda prefira que o público se concentre nas palavras e opte por arranjos que privilegiam atmosferas de teclados, programações lentas de bateria e timbres elegantes/esparsos de guitarras, que, ao fim das contas, reforçam o tom do que é dito ao longo do disco. Não é hora de celebrar nada, é hora de fazer algo. Por isso, os habituais tons acinzentados dos projetos visuais de Anton Corbjin caem como uma luva na capa do álbum, mantendo a identidade do grupo e adaptando-a ao momento atual, que é o alvo das canções de Spirit.

Num tempo de efemérides, um medalhão de trinta e tantos anos de carreira abraça o endurecimento do discurso. Faz isso com um disco irrepreensível, quase um manual educativo para evitar armadilhas fáceis e quase despercebidas no cotidiano. Spirit é um álbum importantíssimo, um manifesto, uma declaração, uma dessas tentativas de utilizar o sistema contra si mesmo. E dá uma sensação reconfortante de que não estamos sozinhos pensando absurdos sobre teorias da conspiração. Um álbum mais que necessário.

(Spirit em uma música: Scum)

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BOM PARA QUEM OUVE: Nine Inch Nails, Moby, New Order
ARTISTA: Depeche Mode

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.