Resenhas

Oddisee – The Iceberg

Disco politizado abre temporada de transformações na música causadas em um momento político obscuro

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Ano: 2017
Selo: Mello Music Group
# Faixas: 12
Estilos: Hip Hop
Duração: 47:00
Nota: 4.0
Produção: Oddisee

A arte, por si só, pode existir sob as mais variadas formas através do tempo. O próprio conceito de arte, muitas vezes vaidoso e efêmero, pode se transformar quando enfrenta uma torção – épocas em que tudo para ser canalizado em poucas vozes raivosas, mas extremamente poderosas. A eleição de Donald Trump e o ideal ao seu redor trarão consequências disruptivas ao sistema vigente, ao mesmo tempo em que também funcionarão como combustível criativo. Às vezes, a arte precisa desse empurrão para sair do conforto e justificar-se como a voz poderosa que é.

Oddisee, rapper de família sudanesa e nascido em Washington D.C, já tinha motivos para ser politizado em um país conhecido pelos problemas raciais. Se outros artistas se posicionaram e construíram obras poderosas ao redor do tema recentemente, como Kendrick Lamar, Solange e Blood Orange, Oddisee parece vislumbrá-lo de outra forma. O Sudão é um dos sete países com cidadãos proibidos de entrar nos EUA, e a chocante situação parece equalizar inevitavelmente em The Iceberg, disco cheio de batidas e música Jazz ao vivo calçada em letras lúcidas sobre a sociedade norte-americana – retrato paralelo e equivalente para diversos problemas globais.

Na líquida, grave e descompassada Hold it Back, o rapper versa que ganha mais que suas irmãs por ter nascido um homem (“I make more than my sister cause I was born as a mister”). A simples letra, que se desenrola sobre a sua vida, coloca questões como o feminismo com naturalidade de um discurso politizado porém nada agressivo. A passividade na voz de Oddisee contrasta com seus discursos poderosos e maturos – seu Hip Hop não é feito necessariamente para ouvidos adolescentes, mas busca plantar sementes justamente nas cabeças mais jovens.

Ele mostra que a luta não é nova em sua vida em NNGE (“What is there to fear?/I’m from black America, this is just another year”), sua lucidez contextualiza a vida na capital do país poderoso norte americano sob o olhar negro. Inevitavelmente, nos vemos pensando em semelhanças com grandes grupos de Jazz Rap, como De La Soul e A Tribe Called Quest. Batidas suaves com instrumentação ao vivo são misturadas a produções inspiradíssimas de Oddisee, seguindo seu ótimo disco instrumental Odd Tapes

The Iceberg parece flutar em águas turbulentas, ficando à deriva na suavidade de seu flow e trazendo batidas que capturam a musicalidade negra; faixas como Like Really e Things destacam sua versalidade, passam do Jazz ao House com a naturalidade evolutiva que tais gêneros tiveram no desenvolvimento da música do século 20.

No entanto, um momento se destaca não necessariamente pela sua criatividade, mas pela sua representatividade: Right And Wrongs, com Oliver St. Louis, é o tipo de música que fazia tanto sentido no momento de luta racial nos anos 1970 – guitarras cheias de suingue, percussões ancestrais e transformação de discursos poderosos em dança. O contexto da faixa não poderia ser mais contemporâneo e nos leva a questionar: o que é certo e errado atualmente? Em um mundo cheio de notícias falsas sendo utilizadas como combustível de ódio e tanta informação jogada, a absorção intelectual parece nos jogar a um abismo, como Oddisee dialoga: “Thinking critically is really on a decline / Please read between the lines”.

Por fim, The Iceberg serve de pretexto para tocar na superfície de problemas raciais e sexuais históricos no mundo que parecem, novamente, emergir da superfície. Tal diagnóstico parece ser cada vez mais notável e a arte do rapper nesse disco só nos leva a crer que a solução para tais momentos de tensão seja realimentar a alma criativa, tornando-a poderosa e nada complacente.

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ARTISTA: Oddisee
MARCADORES: Hip Hop, Ouça

Autor:

Economista musical, viciado em games, filmes, astrofísica e arte em geral.