Resenhas

A Tribe Called Quest – We Got It from Here… Thank You 4 Your Service

Derradeiro álbum de coletivo reconstrói sua própria narrativa em tempos de Trump

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Ano: 2016
Selo: Epic Rocords
# Faixas: 16
Estilos: Hip-Hop
Duração: 60:19
Nota: 5.0
Produção: Q-Tip, Blair Wells

O comediante norte-americano Dave Chappelle, em seu monólogo de abertura no programa Saturday Night Live, exibido na semana passada, resume o argumento de seu discurso — e, em um sentido mais amplo, a situação política dos Estados Unidos — na seguinte sentença: “A América conseguiu, realmente elegeu um troll da Internet como presidente”. A fala de Chapelle se desenvolve acerca de como a eleição de Donald Trump concretizou-se como uma surpresa ingrata, e como esse prenúncio de tempos sombrios mistura-se a uma realidade que, por sua vez, nunca foi fácil — a da população afroamericana. Essa ocasião, de um comediante negro em programa “late night” da TV falando sobre política, parece resumir bem o cenário sobre o qual se desenvolve We Got It From Here… Thank You 4 Your Service, o sexto e derradeiro álbum do coletivo A Tribe Called Quest.

A Tribe Called Quest é um grupo de Rap formado em 1985, e seu primeiro álbum, intitulado People’s Instinctive Travels and the Paths of Rhythm, é uma obra de arte seminal, que ajudou a desenhar, nos anos 90, o que viria a ser a estética do Hip-Hop a partir de então. É um dos álbuns fundadores da “era de ouro” do estilo ao lado de nomes como Public Enemy, Run-D.M.C., Beastie Boys, entre outros. O grupo se dissolveu em 1998, mas, ao reunirem-se novamente no final de 2015 para uma apresentação no programa The Tonight Show Starring Jimmy Fallon, o grupo sentiu-se motivado para a realização de um novo trabalho. Um ano depois, portanto, chega até nós We Got It From Here…. A primeira apresentação ao vivo do grupo, promovendo seu lançamento, curiosamente, se deu no programa Saturday Night Live, no mesmo episódio apresentado por Chappelle.

O fato de que We Got It From Here… foi “concebido” em programas de entretenimento da TV norte-americana não é um mero acaso, mas tal sincronia ganha uma perspectiva mais profunda quando olhamos para os acontecimentos que se desenrolavam em um pano de fundo mais amplo deste cenário. A noite de novembro de 2015, na qual o grupo se apresentava no programa sediado por Jimmy Fallon, foi a mesma dos atentados terroristas na casa noturna Bataclan, em Paris. Um ano depois, enquanto o álbum era lançado oficialmente, o mundo assistia a chegada de Trump ao poder.

Tal conjunção de fatores nos faz pensar em como política e entretenimento estão interligadas. Por um lado, é simbólico o fato de uma casa de shows cosmopolita ter sido escolhida como alvo do terror pelo Estado Islâmico, uma tragédia antes de tudo, mas também uma manobra que visa instaurar o medo, e, consequentemente, a privação da liberdade individual dos cidadãos em um Estado de Direito. De outro lado, é justamente o comportamento bufonesco de Trump, focado em expulsar imigrantes e retaliar terroristas, adotando uma fala sem lógica (mas fascinante de escutar), que deu visibilidade ao candidato. Se a liberdade e a expressão individual estão ameaçadas, se políticos são meros personagens que manipulam as paixões e o sentimento do eleitorado, e se a política tornou-se descaradamente um espetáculo de entretenimento com a demagogia de Trump, faz sentido que A Tribe Called Quest veja nestas uma oportunidade de contra-ataque, fazendo deste também o seu território de atuação.

É assim que We Got It from Here… nasce. O álbum está intrincadamente ligado com essa realidade mista. Seu ativismo político é uma marca de peso, mas a leveza e a desenvoltura típicas de A Tribe Called Quest também estão presentes. A banda, ao longo de seus discos, sempre mostrou um amplo entendimento de mundo, e, somado a este pensamento crítico, um conforto que celebra a sua própria identidade. Basta olhar para a segurança e para o prazer visível que a banda demonstra em sua apresentação no SNL. A comédia fala de um modo acessível, mas também expõe o absurdo do cotidiano de uma forma factual, exibindo a realidade tragicômica que se desenrola diante de nossos olhos. A Tribe Called Quest trata de assuntos sérios de modo relaxado e, portanto, catártico à sua maneira.

Quanto à vertente política do álbum, podemos destacar três momentos bastante significativos. A faixa de abertura The Space Program ironiza o empreendimento de colonizar Marte como uma fuga utópica (e trabalhosa) para problemas atuais. Se a Terra sofre com o esgotamento de seus recursos, e com o renascimento de uma visão extremista do conservadorismo, da política racista, xenofóbica e misógina, habitar outro planeta parece ser insistir na lógica colonizadora dos séculos passados, e, portanto, insistir no erro de não encarar a realidade de uma forma responsável. We The People, a pérola deste álbum, sintetiza um discurso sólido que não se deixa abalar pelo movimento fascista de demonização de “minorias” por uma simples razão: ele não é novo. A faixa reproduz cinicamente o discurso de Trump apenas para desarmá-lo com a postura firme dos rappers. Solid Wall Of Sound, uma referência a uma técnica de gravação que sobrepõe camadas de instrumentos criando uma música densa, é por fim, a alternativa poética de resistência do grupo, um muro inclusivo que responde àquele que procura excluir os mexicanos dos EUA.

No entanto, em We Got It From Here… o grupo também celebra o passado, sua história, e homenageia Phife Dawg, integrante que faleceu antes do lançamento do trabalho. Musicalmente, resgata a sonoridade que os consagrou nos anos 90, misturando batidas sincopadas, versos fluídos, samples de Jazz e o acento do Rasta. Parte do desafio que We Got It From Here… trazia, o de como fazer soar relevante um trabalho inédito de um grupo consagrado há quase vinte anos, é também a causa de seu sucesso. Assim sendo, revisitar a era de ouro do Hip-Hop noventista é fazê-lo renascer, e, portanto, torná-lo possível novamente. Aqui, A Tribe Called Quest é retro-alimentada por aqueles artistas que viu surgir. De André 3000, passando por Kendrick Lamar e chegando até Anderson .Paak, o álbum apropria-se de uma linha sucessória na qual artistas foram influenciando os da geração seguinte, e os reúne em uma grande homenagem ao Hip-Hop que forma o estado da arte no qual acreditam. Nesse sentido, o título do trabalho sintetiza muito bem as duas vertentes que carrega. É, ao mesmo tempo, uma reivindicação de poder em detrimento do paradigma político atual, e uma passagem da tocha para a nova geração do Rap (ouça Dis Generation).

O jornalista Andrew Sullivan, citando Sócrates em seu texto Trump e os Limites da Democracia, nos diz que “é provavelmente a partir da democracia, e de nenhum outro regime, que a tirania se estabelece”. Assistir ao desenrolar de acontecimentos que o processo de composição de We Got It From Here… acompanhou, dos atentados do estado islâmico, ao Brexit, à vitória de Trump, é como assistir a colocação de peças extremamente instáveis em uma estrutura frágil de dominós que é a nossa História. Uma rede de causa e efeitos indiretos que formam uma narrativa imprevisível.

Nos anos 90, A Tribe Called Quest apontava o dedo para uma sociedade apoiada em uma “realidade falsa”. Em 2016, acusa a mídia de construir uma narrativa falsa, pós-factual. Essa mídia que produz late shows, palcos televisivos que já tiveram Donald Trump como convidado, não foi capaz de prever a vitória do mesmo, ignorando sua ascensão e a imensa probabilidade de tal fato se consumar. We Got It From Here… faz parte dessa falsa narrativa. Faz parte também da narrativa improvável de novos tempos intolerantes que se anunciaram e concretizaram. Por isso, reside em uma espécie de fratura do tempo. Um tempo ao qual pertence, mas para o qual consegue olhar com distanciamento. É também um álbum que resgata a sua própria história e a reorganiza. Entre os anos que separam seu surgimento e seu encerramento — os anos 1990, ainda relevantes, e os 2010, ainda imprevisíveis — o grupo traça sua própria narrativa: a de uma história motivada pela ordem política atual, mas contra a mesma.

(We Got It From Here, Thank You 4 Your Service em uma música: We The People)

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BOM PARA QUEM OUVE: Kendrick Lamar, Wu-Tang Clan, The Roots
MARCADORES: Hip-Hop, Ouça

Autor:

é músico e escreve sobre arte