Resenhas

Radiohead – A Moon Shaped Pool

Banda lança álbum delicado, dividido entre o viés político e o resgate ao passado

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Ano: 2016
Selo: XL
# Faixas: 11
Estilos: Art Rock, Indie
Duração: 52:31
Nota: 5.0
Produção: Nigel Godrich, Radiohead

How to Disappear Completely, nome de uma das faixas do icônico álbum Kid A, da banda inglesa Radiohead, é um título que revela um desejo intrínseco, a vontade de ocultar-se. Um tutorial tão improvável de ser formulado parece, no entanto, surtir efeito pouco mais de 15 anos depois e traz consigo um paradoxo praticamente imprevisível: o de como tornar-se o centro das atenções desaparecendo.

O filósofo italiano Giorgio Agamben nos diz, em seu ensaio Identidade sem Pessoa, que “o desejo de ser reconhecido pelos outros é inseparável do ser humano. Este reconhecimento é-lhe, mais ainda, tão essencial que o ser humano está disposto, para o obter, a pôr a sua própria vida em jogo. Não se trata, com efeito, simplesmente de satisfação ou de amor-próprio: mas é antes, somente através do reconhecimento dos outros, que o homem pode constituir-se como pessoa.”

Não por acaso, quando, ainda em 2014, Jonny Greenwood anuncia a incursão de sua banda em estúdio para compor um novo álbum, corremos para traçar uma revisão de sua discografia, a fim de tentar decifrar qual seria o teor de seu novo trabalho. O artigo acabou intitulado A Auto-Destruição de Radiohead.

Por isso, quando Radiohead, na antecipação do lançamento de A Moon Shaped Pool, resolve, num misto de estratégia de marketing e de performance artística, apagar-se do mundo digital, podemos deduzir duas coisas. A primeira, que tal atitude não é necessariamente inesperada, mas que é a consequência lógica de uma longa trajetória artística. A segunda, que acontece justamente para que “o homem possa constituir-se como pessoa”, ou seja, que a banda renasça, e que seu desaparecimento, afinal, apenas reforce o impacto de seu ressurgimento.

Identidade sem Pessoa, contudo, ainda nos ajuda em outro propósito. O texto nos revela que a “personalidade”, antes um conjunto de funções e atitudes sociais, e, durante milênios, a posse mais ciosa e significativa do ser humano, aos poucos, por conta de uma técnica de polícia, se transforma em “identidade”, um conjunto de atributos biológicos (a cor da pele, do cabelo, o tamanho do nariz, etc.) sobre as quais o indivíduo não tem qualquer controle.

E é justamente por conta de tais atributos biológicos que nos tornamos facilmente catalogáveis pelo Estado. Nesse sentido, com o advento da tecnologia, a fotografia 3×4 de seu bilhete de identidade transmuta-se no reconhecimento de impressão digital pelo seu celular, de retina pelo seu banco, e num chip no seu passaporte. Gradativamente, nossa identidade não é mais nosso papel moral diante da sociedade, é apenas um mecanismo de controle de criminosos em potencial.

Parece fazer sentido toda a estratégia de lançamento de A Moon Shaped Pool que se inicia, como dissemos, pelo desaparecimento digital da banda, seguida pelo envio de algumas cartas para os fãs, e, finalmente, conclui-se com o lançamento do videoclipe Burn The Witch.

É válido lembrar, nesse contexto, de três casos emblemáticos que confundem desaparecimento digital com mecanismos de controle de estados democráticos disfarçados de estados de exceção (ou vice-versa). Aaron Swartz comete suicídio após realizar o download de milhares de artigos acadêmicos e ser processado pelo Ministério Público dos EUA; Edward Snowden vive em asilo político na Rússia após denunciar o sistema de vigilância global da NSA americana; Julian Assange também vive em asilo político após vazar informações governamentais através de seu site WikiLeaks. “Don’t shoot the messenger”, diziam os cartazes nos protestos em defesa de Assange. “Shoot the messenger” é justamente um dos versos presentes na faixa em questão, que simboliza a histeria coletiva provocada por um estado de pânico induzido.

O clipe, que apropria-se do enredo de um clássico do terror cinematográfico (The Wicker Man), e o subverte ao transformá-lo em uma animação infantil (baseada no clássico inglês Trumpton). A estratégia aqui é simples: denunciar a sociedade normatizada que comete atrocidades contra aqueles que diferem dela. Essa denúncia vem bastante a propósito da tensão mundial que assistimos, uma sensação de “caça as bruxas” e que acusa, seja na América, seja na Europa, os Estados que repelem aqueles indivíduos, identidades sem pessoa, que eles próprios refugiam.

Contudo, embora esse viés político seja a porta de entrada para A Moon Shaped Pool, o álbum não se reduz a ele. Como a primeira audição, por mais despretensiosa que seja, já mostra, A Moon Shaped Pool é um álbum bastante delicado e melancólico. É interessante também como Radiohead volta ao universo orgânico, após a incursão hermética no universo eletrônico de seu antecessor, The King of Limbs (2011).

A atmosfera que rege A Moon Shaped Pool traz sintetizadores cintilantes, cliques percussivos, algumas melodias murmuradas e até uma tentativa de Bossa Nova. Há também a presença marcante da London Contemporary Orchestra, que dá vida aos arranjos de Jonny Greenwood, que, por sua vez, aqui trabalha uma faceta já conhecida de suas trilhas sonoras em colaboração com o cineasta Paul Thomas Anderson. Em alguns momentos, as faixas apresentam o andamento reduzido e vocais invertidos, o que, talvez, possa ser interpretado como um desejo de desacelerar o ritmo do pensamento e de retornar ao passado.

A Moon Shaped Pool é marcado por algumas perdas pessoais. Thom Yorke divorcia-se de sua esposa após 23 anos de casamento e Nigel Godrich, o produtor a quem foram confiadas tantas faixas que nunca haviam funcionado em estúdio, perdeu seu pai. O álbum, todavia, não é sobre estes assuntos, e forçar a interpretação de suas letras neste sentido poderia soar determinista, mas não há dúvida de que um sentimento de pesar imprimiu sua energia durante a elaboração do trabalho.

O clipe de Daydreaming mostra Thom Yorke passando por ambientes cotidianos sem ser notado, como se habitasse outro plano. Caminha por espaços vazios e depara-se com várias portas, um símbolo de passagem para o desconhecido. Os espaços que visita não se conectam, o que nos leva a deduzir que o tempo que ele atravessa também não é contínuo. Talvez não estejamos diante do tempo do relógio, e sim do tempo imanente da consciência, ou seja, o tempo da memória.

Atravessar espaços que não estão necessariamente interligados e reviver momentos do passado parece ser exatamente a essência de A Moon Shaped Pool. Oito das onze canções presentes no trabalho já foram ouvidas pelo público ao longo dos últimos anos. Finalmente estão aqui, concretizadas em um álbum, com suas versões de estúdio. A mais antiga delas, intitulada True ove Waits, foi tocada pela primeira vez em 1995. Recorro, mais uma vez, a Agamben, segundo o qual “repetir alguma coisa é torná-la possível novamente”. Por isso, a ideia de repetição é similar à operação de nossa memória: ela restaura uma possibilidade do passado.

Como vimos, o ser humano, ao longo da história, é separado de sua personalidade quando sua identidade é transformada em meros atributos físicos. Identikit, nome de uma das faixas, é um software feito para reconstituir a aparência de criminosos, uma versão digital do retrato falado, que utiliza um banco de dados predeterminado. Aparência, contudo, não dá conta da comunhão entre a moral e nosso papel social. “Sweet faced ones with nothing left inside”, nos diz a sua letra. Tal vazio acaba por provocar a recapitulação de quem, na verdade, somos. Ainda somos os mesmos que éramos quando crianças? De quando éramos casados? As coisas que já aconteceram, embora não existam mais, continuam a operar transformações sobre nós?

True Love Waits, uma música que finalmente encontra sua versão final vinte anos depois, é a tentativa da banda de amarrar suas pontas soltas e de atualizar – e, portanto, reviver -, o tempo que só existe em nossa memória. “O amor verdadeiro espera” canta Yorke com um misto de sarcasmo e resignação. Em um álbum marcado pelo desamparo, por perdas pessoais e pelo resgate do passado, termino esse texto com uma citação do cronista brasileiro Paulo Mendes Campos: “em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.”

(A Moon Shaped Pool em uma música: True Love Waits)

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BOM PARA QUEM OUVE: Bjork, Jonny Greenwood, Atoms for Peace
ARTISTA: Radiohead
MARCADORES: Art Rock, Indie, Ouça

Autor:

é músico e escreve sobre arte