Resenhas

P.J Harvey – The Hope Six Demolition Project

Novo disco de P.J Harvey é combativo, sincero e pungente

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Ano: 2016
Selo: Vagrant
# Faixas: 11
Estilos: Rock Alternativo, Blues Rock, Singer Songwriter
Duração: 41:43
Nota: 4.0
Produção: Flood

Cá estamos nós com The Hope Six Demolition Project, o nono álbum da carreira de Polly Jean Harvey. Ele tem vínculo ideológico e estético inegável com seu antecessor, o ótimo Let England Shake, de 2011, multi-premiado e esbanjante de uma cancha política elegantíssima, trazendo as reflexões de P.J sobre o mundo e o momento particularmente estranho que estamos atravessando. Para isso, ela, o produtor Flood e o fotógrafo de guerra/diretor de cinema Seamus Murphy mergulharam em histórias da Primeira Guerra Mundial e outras mais atuais para fornecer uma radiografia política e social da Inglaterra, esta ilha que tanta gente ama amar mas que esconde uma sociedade estranha, convive com desemprego e tensões entre imigrantes, fascistas, negros, monarquia, minorias diversas, enfim, um exemplo bem peculiar de país.

Como tal modelo foi bastante eficiente e abrangente, P.J deu sequência de forma ampliada, empreendendo viagens pelo mundo logo após divulgar o disco, com destinos pouco usuais como Afeganistão, Kosovo, Turquia, Washington, indo e vindo e se embrenhando em acampamentos de refugiados, periferias não muito afortunadas, convivendo com gente insuspeita. Mais que isso: a presença de Murphy na empreitada acabou por conferir um ar de documentário sobre a realidade de oprimidos e o quanto tal circunstância está presente na nossa cada vez mais desigual sociedade neoliberal. Nada disso, no entanto, aparece de forma explícita ao longo das onze faixas do disco, tampouco as soterra numa onda de “discurso se sobrepondo à melodia/canção”, pelo contrário, fornece um poderoso material temático para P.J discorrer livremente sobre esses assuntos.

A ideia de Polly ao gravar as canções era tornar o álbum praticamente acessível a quem quisesse ver. Com um estúdio em que ficava além de uma grande vidraça, através da qual quem estivesse disposto poderia vê-la em ação, a cantora/compositora inglesa optou pelo uso do idioma que domina bem, a interseção seca de Blues e Rock, com um pé no Punk e na música alternativa dos anos 1990. Sua voz e seu uso anárquico do saxofone também estão intocados, bem como a participação do companheiro John Parish, guitarrista e parceiro de criação musical. A primeira faixa, The Community Of Hope, soa como uma grande vinheta de apresentação do que estamos por ouvir. Polly fala de quem está do lado, do que é seu álbum, declara suas intenções e se coloca a postos. O instrumental é um Folk Rock alternativo, animado, celebratório, abrindo caminho a facão pela mesmice. Logo em seguida, na direta e reta The Ministry Of Defense, ela, como se diz no jargão futebolístico, “cai matando” em cima da situação vigente no Afeganistão, aquele país que vem sendo destruído por forças externas desde o início dos anos 1980, quando tropas soviéticas o invadiram. Bateria com rufos marciais e uma levada dura pontuam a canção.

A Line In The Sand é cinematográfica, falando de divisões, segregações nós e eles. A voz da moça vem em falsete, com participação de vocais de apoio masculinos em tom menor, soando como se fossem vozes soltas ao acaso. O instrumental tem alguma pontuação oriental não identificada, mas que passa perfeitamente ao ouvinte. Chain Of Keys é um Blues desértico e cantando por seres da areia em algum lugar perdido num pesadelo qualquer, no qual tempo e espaço são borrões. River Anacostia vem em seguida, soando como se fosse uma canção religiosa e ancestral, que leva o nome de um rio americano próximo à cidade de Washington. A voz de P.J parece um elemento da natureza do qual não vamos conseguir escapar num eventual juízo final, que chegará sem que notemos e o qual só iremos perceber quando já terá sido tarde demais. Near The Memorials To Vietnam And Lincoln é quase uma canção para revolucionários entoarem em volta da fogueira, falando de pontos turísticos da capital americana com melancolia e dor.

Mais de ritmos marciais e essa impressão de “Blues do deserto” pontuam The Orange Monkey, clima que também impregna a invocada Medicinals, que se destaca por uma performance vocal com mais sangue nos olhos que a anterior, valendo também do uso de saxofone – tocado por Polly, claro – como um instrumento que, a princípio parece fora do contexto. Ela acaba sem aviso e dá lugar a The Ministry Of Social Affairs, outro Blues superlativo que parece mirrado e desordenado. Aliás, a impressão deste “caos controlado” ao longo do álbum é outro de seus charmes. The Wheel, animada e engajada e a sintomática Dollar, Dollar fecham este percurso sonoro por lugares que só conhecemos por fontes secundárias e terciárias de informação.

P.J Harvey teve habilidade suficiente para costurar temas encrespados, musicalidade nua e crua e, ainda assim, manter-se fiel às suas propostas estéticas desde sempre. Usou de sua relevância, de sua voz e de seu talento para fazer mais um álbum belíssimo, honrado a tradição de ter uma carreira só com acertos, desde o início dos anos 1990. Bravo.

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Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.