Existe um certo misticismo ao redor do nome de Kendrick Lamar que somente alguns artistas conseguem obter ao longo de sua carreira. Sua áurea e personalidade podem transpor a sua música em alguns momentos, o que pode ser tanto algo benéfico como extremamente perigoso. Mas, em um meio musical como o Hip Hop, este conflito é ardente, latente e impossível de ser esquecido: você quer ser o melhor, o maior e deseja de todas as formas sair de sua situação normalmente desfavorecida – paradoxos e conflitos de interesse existirão e talvez o que você almejava não seja bem o que te trará felicidades ao final. Esta batalha é sentida da cabeça aos pés em To Pimp a Butterfly, a complexa obra conceitual do rapper de Compton.
A analogia presente no título de seu terceiro álbum diz muito sobre a obra como um todo, muito mais do que poderíamos imaginar. O desabrochar de uma lagarta em uma borboleta, ou seja, a transformação de um inseto quase imperceptível para um ser que encanta a todos é semelhante à passagem de vida do rapper: das ruas para o sucesso. É também a história fictícia de muitos negros nos EUA que não conseguem simplesmente obter algo que pode ser simples para muitos: o reconhecimento. Logo, a obra como um todo flui por todo o egocentrismo de Kendrick , mas pode ser extrapolado para algo muito maior, e é nesta apropriação que ela cresce e merece todos os elogios que vem recebendo.
Esta batalha conflituosa entre toda a metaformose de Kendrick passa pelas 16 faixas do disco, um trabalho de Hip Hop que foge totalmente do que estamos acostumados a ouvir no gênero. Elementos vindos de toda a história da música negra nos EUA, como Jazz, Funk, R&B, a poesia falada de Gill-Scott Heron, Soul, Rap e Hip Hop se misturam em uma performance interpretativa fora do comum de Kendrick. O rapper sempre se mostrou extremamente talentoso, no entanto, temos o seu maior trabalho enquanto interpretação artística: ele canta bêbado, grita, chora e muda o seu timbre de voz por diversas vezes e diferentes modos que somente poderíamos ver em grandes atuações artisticas.
São tantos elementos e complexidade por trás do personagem de Kendrick que chegamos a nos confundir quando estamos o ouvindo – é mesmo um álbum ou uma peça de teatro, um filme? Se, por exemplo, em good kid, m.A.A.d. city tínhamos a noção clara de que o disco se tratava de um filme sobre a vida de Lamar, temos aqui a sensação de estarmos diante de um musical psicodélico em que sonhos e realidade se misturam em vários atos, conscientes e incoscientes que se tornam um só elemento ao fim.
O conflito de Kendrick poderia ser sintetizado na abertura do disco, tamanha a importância da faixa para obra. Wesley’s Theory começa com um sample do cantor jamaicano Boris Gardner dizendo “every nigger is star”, encontra a voz do icone George Clinton trazendo a analogia da borboleta – “when the four corners of this cocoon collide/you’ll slip through the cracks hoping that you’ll survive”- e explicita a relação do rapper com o sucesso -”at first I did love you but now I just wanna fuck”. Talvez a música poderia terminar aí, no meio da Psicodelia e da mistura de Hip Hop com Jazz Fusion, no entanto, uma ligação de Dr. Dre no meio da faixa nos mostra sobre o que é o conflito vivido por Lamar: a sobrevivência. Dre diz: “Remember the first time you came out to the house? /you said you wanted a spot like mine/but remember, anybody can get it/ the hard part is keeping it, motherfucker”. Manter-se uma estrela, logo, se prova o maior desafio. Ter o reconhecimento dos demais como negro, uma batalha.
Daqui pra frente, encontramos momentos brilhantes do músico em faixas como King Kuta, u, These Walls e You Ain’t Gotta Lie- sempre com uma atmosfera de difícil de definição, muitas vezes assustadora e, em outras, somente letárgica, mas sempre carregada de um groove fantástico. A escolha de uma banda de apoio de respeito para acompanhar suas rimas e a batida criada por seus produtores se mostrou certeira. Thundercat dita o rumo do baixo, encontrando aberturas para que seu grave traga drama e intensidade na medida certa, enquanto participações vão passando no meio deste sonho: Bilal, Snoop Dog, Anna Wise e Rapsody, entre outros. Sopros, baterias inusitadas, guitarras e pianos jazzísticos se colocam entre cada instante como a textura que cola todas as referências.
Flying Lotus pode não ser o nome que assina todas as faixas deste colossal e estruturado trabalho, no entanto, podemos perceber muito bem a parceria dele com Lamar nos últimos anos e entender de onde vem essa áura mistíca e onírica da obra carregada, é claro de Jazz e elementos eletrônicos. Mama, talvez seja o maior exemplo, mesmo sem ser creditada a Lotus. Batidas, influências e a mesma visão de música contemporânea são seguidas por Kendrick e muitas vezes acabamos nos perdendo nas referências por não saber até onde esta parceria separa esses talentosos músicos. As diversas metamorfoses que cada faixa apresenta em perfeitas viagens lisérgicas mostram o conflito pessoal que Kendrick passa o tempo tempo: por isso as mudanças bruscas de percursos e os caminhos tortuosos para se chegar ao fim de uma música.
Existem alguns momentos que explicitam a batalha entre chegar à fama e as tentações que se tem: u(“love you is complicated”) e For Sale?, com sua analogia a Lúcifer (Lucy), mas um verso que percorre o disco todo, a cada interlúdio ou pensada pausa, pode dar o tom deste caminho tortuoso que Kendrick passa ao longo do disco: “I remember you was conflicted/misusing your influence/sometimes I did the same/abusing my power, full of resentment/resentment that turned into a deep depression/found myself screaming in the hotel room/I didn’t wanna self destruct The evils of Lucy was all around me so I went running for answers”. É esse narrador que sempre coloca o ouvinte a par do conflito e de toda a sua atmosfera onírica.
A sorte é que não temos problemas de anacronismo na obra. Enquanto Kendrick se apropria do passado, ele o faz de uma forma totalmente coerente e a torna contemporânea, como o Bebop de For Free?, que faria Charles Mingus sorrir com o rapper usando sua voz para criar um instrumento rítmico e rápido que poderia estar na famosa banda do “Angry Man of Jazz”. Mas este é um disco sobretudo de Hip Hop e temos muitas batidas em Alright (produzida por Pharrell), The Blacker the Berry e i. Essa última, aliás, se encaixa muito bem no álbum e tira totalmente a expectativa de que seu novo disco seria muito mais sobre a felicidade de Lamar do que sobre os seus conflitos – temos aqui uma versão muito mais suingada, ao vivo e poderosa da faixa que ganhou o Grammy. Ela se completa ao final com um discurso do rapper em um fictício palanque para uma audiência nervosa: “2015, niggas tired of playin’ victim dawg/Niggas ain’t trying to play vic/ since Tutu how many niggas we done lost?” – lembra ali a morte do amigo Tutu que fez Lamar perceber que a vida no crime iria o matar, logo, o Rap seria a sua saída e se fazer de vítima como negro, não é a solução para um problema muito mais complexo de reconhecimento étnico.
Kendrick Lamar tinha a ideia deste disco muito bem elaborada em sua cabeça: criar uma obra conflituosa que pudesse ao mesmo tempo lhe fazer questionar as suas escolhas de vida e o seu estado atual diante do sucesso, isso de uma forma musicalmente distinta. No entanto, utilizando todos os elementos que fizeram o seu ofício se tornar um dos estilos mais populares do mundo e que representam a cultura negra como Jazz, Funk, Fusion e R&B, o rapper consegue passar a sua mensagem com brilhantismo e inovação. Uma mensagem que vem ecoando na música negra e que foi representada no disco de protesto de D’Angelo, Black Messiah.
Ao final, um diálogo com Tupac (na verdade, uma entrevista fictícia a partir de um áudio perdido do icônico rapper), coloca Kendrick diante da batalha de ser negro em um país que tem dificuldade em enxergá-los diante de seus direitos. Logo, pelas palavras do rapper e diante de seu sucesso, ele diz que todo negro deveria ser uma estrela, mas não é: “every nigger (lagarta) is a star (borboleta)”. A questão aqui é que Lamar conseguiu dizer estas palavras com provavelmente o disco de Rap mais inovador e interessante dos últimos tempos. Na verdade, ele extrapola o estilo e consegue entregar uma peça de arte icônica de música negra que deve aumentar ainda mais a mística ao redor do seu nome. Se good kid, m.A.A.d city já é um clássico, To Pimp a Butterfly é uma obra prima.