Resenhas

Racionais MC’s – Cores e Valores

Dozes anos levaram a uma mudança de formato e estilo na maior ruptura sonora do seminal grupo de Rap

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Ano: 2014
Selo: Cosa Nostra, Boogie Naipe, X-File Records
# Faixas: 18
Estilos: Hip Hop, Rap
Duração: 32:00
Nota: 4.0
Produção: DJ Cia, Mano Brown

Todo hiato é representativo: cria expectativas, muda-se elementos e pode criar uma (r)evolução. No entanto, muita coisa mudou no Brasil desde o último lançamento de Racionais MC’s, Nada Como Um Dia Após o Outro, de 2002. Doze anos se passaram e o grupo mais importante do Rap no país nunca esteve perto do silêncio. No período, tivemos a chance de perceber e ouvir todos os clichês eleitorais de como as coisas se tornaram mais ricas, justas e distribuídas. Mas será que é realmente verdade? Cores e Valores é o relato intrínseco de que “somos o que somos” e que a nossa história está ai para ser comprovada – não existe o pretérito perfeito e nosso futuro é nebuloso, pelo menos em questões socias e étnicas.

Como explicitar isso mantendo suas origens de contravenção social, vida bandida e relato social ao mesmo tempo em que o Rap se tornou outra coisa no seu país? Como se posicionar diante de um público que outrora era sua maior crítica e agora “paga um pau” na balada? Cores e Valores é o disco mais direcionado, acessível e batido de Racionais MC’s, ao mesmo tempo em que é o mais polêmico – não por suas letras, mas por formato. Enquanto seu último trabalho se tornou um marco no Rap nacional com suas quase duas horas de duração, faixas igualmente longas e que conduziram um movimento histórico da periferia para o centro pela via musical, este cenário é totalmente diferente agora.

O Hip Hop, formato rítmico mais acessível da poesia em movimento do Rap, se tornou um dos estilos mais populares no Brasil, independente da classe social. Temos Emicida, Criolo, Rashid e Rael, entre diversos outros tocando em rádios e novelas, e estão mais presentes da vida de grande parte da população. Ao mesmo tempo, a sua acessibilidade veio com a mudança do próprio estilo, mais amplo, dinâmico, grave e criado para ecoar bem nos headphones e caixas de som de balada cara. O grupo, que ganhou status de celebridade nas rodas vivas, Lollapaloozas, viradas culturais e apresentações na MTV, ganhou outro público, elevou seu status junto a ele com uma almejada e merecida “carteira cheia de dólar, euro”. Tudo isso se reflete em Cores e Valores, que, com cerca de 32 minutos em 15 músicas interligadas em poucos segundos e aspecto de mixtape, é igualmente polêmico com o histórico do grupo. Jogou, também, questões quando foi lançado pelos próprios no seu canal do YouTube. É isto mesmo ou uma prévia? São trechos para depois comprá-lo no Google Play?

Entre Cores e Valores e Cores e Valores: Finado Neguin temos pouco mais de oito minutos, o equivalente de Da Ponte Para Cá, presente no disco duplo clássico do quarteto. Entre as sete faixas, vinhetas que se interligam em batidas densas com mais elementos, temos um som bastante influenciado pelo Hip Hop norte-americano que foge do Rap cru que os fez arrebatar multidões. No entanto, o aspecto de prévia questionado é todo dissipado quando se percebe que na verdade tudo se forma em uma só música cheia de peso, aspecto nunca perdido. Ao mesmo tempo, se o som está mais comercial, “pra playboy”, o faz sendo autêntico e tirando o doce da boca de todos logo em seguida. Entre os versos de Ice Blue em Somos o que Somos, que relata a sua vida das ruas como uma adaptação e não uma invenção, semelhante a guerra entre os “muçulamanos e USA”, a excelente Eu Te Disse de Mano Brown e a lisérgica, Preto Zica de Edi Rock, temos a sensação de que a produção nunca esteve tão gringa (o disco foi finalizado nos EUA) e que todos os momentos poderiam ser extendidos – ferem o ouvinte por o deixarem querendo mais. Suas batidas urbanas se conectam com seu histórico, enquanto a última faixa da série utiliza da metalinguagem para falar do mundo do crime que é abordado na capa do álbum (o roubo).

Concomitantemente, “o outro lado do disco”, o B, vislumbra o passado com outro olhar – troca-se o peso de quase um Trap para voltar ao Groove e Funk de outrora em momentos reveladores de seus membros, como em O Mal e o Bem, provavelmente a única balada de verdade feita pelo grupo em sua discografia. Possui toques de Sampa Crew e elementos que a colocariam dentro de um lounge de desfile de moda ou num momento romântico na balada. As letras que abordam a história do grupo, seus encontros que culminaram na sua atual formação e o seu papel na música “contra o racismo, a desigualdade, a fábrica que exporta a criminalidade”, põem Edi Rock em um momento bastante pessoal e suingado na faixa mais longa de todo disco, com exatos cinco minutos. A Praça apresenta excertos da televisão do famoso caso da virada cultural de 2007, seu confronto histórico com a polícia e a cobertura midiática do evento, enquanto Eu Te Proponho traz um Mano Brown romântico como nunca, convidando o ouvinte a “fugir desse lugar”. Talvez, o único resquício do antigo Racionais MC’s, pelo menos na produção, apareça em Quanto Vale o Show? com samples de Gonna Fly do filme Rocky e vozes de Silvio Santos.

Logo, tudo realmente mudou e o ouvinte deve, neste primeiro momento, esquecer seus versos decorados de Nego Drama ou Vida Loka Parte II,pois estes relatos formam um manifesto praticamente definitivo do grupo a uma sociedade que mudou, mas que continua racista e segregadora. Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e DJ KL Jay já não falam das mesmas coisas com tanta profundidade – preferem ser objetivos e diretos -. por isso os versos repetidos à exaustão na primeira metade do disco: “Cores e valores, somos o que somos” – os valores/tratamentos estão ligados a sua cor e é a mensagem que querem deixar na obra, algo mostrado na melhor faixa do disco, Eu, Compro.

Até então, a oitava faixa era o momento mais longo do disco, com cerca de três minutos e meio. Nela percebemos que na mão de favelado continua sendo “mó guela” como Mano Brown afirmara em Vida Loka Parte II, mas que agora o outrora pobre consegue comprar tudo no “shopping da hora com os moleque lá fora pedindo esmola”. A ambição e o dinheiro sempre estiveram presentes nas letras do grupo mas com olhares vislumbrantes e reais, como Brown dissera na clássica faixa, “Deus é uma nota de 100”. Agora, a ostentação é possível não só aos membros do grupo, devido ao seu sucesso, mas também à grande parte da população. Ice Blue diz, no entanto, expondo a ferida nunca esquecida: “Eu quero, eu compro e sem desconto/ À vista/ Mesmo podendo pagar, tenha a certeza que vão desconfiar/ Pois assim é disfarçado a muitos séculos, não aceita seu status nem sua cor”. A faixa, que tem também um verso questionável, citando 50 Cent, representa ao mesmo tempo a premissa de acreditar em você e seguir seus sonhos e que o limite da sua ambição não importa desde que seja conquistado – desejos que ultrapassam cores mas que esbarram em antigos valores.

O tema central da faixa nos faz questionar também que enquanto Cores e Valores tem em pelo menos sua metade faixas muito bem produzidas, fugindo do Rap para se concentrar nas batidas graves do Hip Hop moderno – elementos Pop que conversam sem ferir o público rico que agora estampa na parede o poster não só do Tupac, mas do Racionais -, possui também capacidade de olhar para a sociedade atual sem fugir da responsabilidade adquirida ao longo de 25 anos de carreira.

Eles estão lá sim para incomodar, mas “degradar para agradar vocês? Nunca”, como afirma Mano Brown na abertura do disco. Estão lá para fazer um dos discos mais bem produzidos de Hip Hop nos últimos anos no nosso país, deixando o público sedento por mais do que alguns meros segundos. Mostra que está ciente do status adquirido, do papel que representa na música e que não ficou parado no tempo, pois comodismo nunca foi o mote conduzido pelo grupo e nunca será o seu atestado de morte. Sobe no palanque e mostra que o movimento de popularização do estilo musical que eles ajudaram a criar tem sim uma referência: Eles mesmos, Racionais MC’s. Agora, com mais uma obra autêntica a sua história contraventora, pelo menos em seu formato, nos deixa uma questão no ar perante aos seus fãs. Será que o público fiel que os abraçou em seus piores momentos estará junto nesta ruptura sonora? Se este não é o melhor momento de sua discografia, temos ainda assim um som atual, ótimo e com algumas letras crônicas e representativas da sociedade atual – mutante em algumas coisas, mas estaganada em diversas outras.

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BOM PARA QUEM OUVE: Notorious B.I.G, Tupac, Wu-Tang Clan
ARTISTA: Racionais MCs
MARCADORES: Hip Hop, Ouça, Rap

Autor:

Economista musical, viciado em games, filmes, astrofísica e arte em geral.